O PAPEL DA MULHER NA DITADURA MILITAR

Segundo a pesquisadora Susel Oliveira, autora do livro “Mulheres, ditaduras e memórias”, as mulheres militantes encarnavam um papel duplamente transgressor: transgrediam enquanto agentes políticos ao se insurgirem contra a ditadura e também transgrediam ao romper com os padrões tradicionais de gênero. Ou seja, as mulheres não eram acusadas apenas de serem terroristas, mas de serem terroristas e mulheres, pois ocupavam um espaço público destinado aos homens. Dessa maneira, a figura da mãe ou da santa cedia lugar rapidamente à figura da bruxa e da prostituta. Desde o momento da prisão até o horror da sala de torturas, estavam nas mãos de agentes masculinos fiéis às performances de gênero, que utilizavam a diferença como uma forma a mais para atingir as mulheres.

Também de acordo com a teórica, podemos falar da disseminação da tortura, do desaparecimento e dos sequestros perpetrados pelas forças repressivas durante a ditadura militar, que atingiram os militantes em geral, adquirindo um caráter específico em relação às mulheres por meio da violência baseada no gênero. Torturar através de violação, mutilação, humilhação, insultos e ameaças sexuais caracteriza a tortura baseada no gênero, sistematicamente utilizada contra as mulheres, apesar de, muitas vezes, homens e meninos também serem vítimas desse tipo de tortura; acrescentando-se especificamente às mulheres os choques elétricos em grávidas e introdução de objetos na vagina. Torturas cometidas pelos agentes do Estado, aqueles que Martha Huggins em Operários da Violência denomina de perpetradores de atrocidades que tinham o aval de uma imensa gama de facilitadores de atrocidades. Funcionários de um Estado de exceção que, durante a ditadura militar, tinham licença especial para matar, torturar ou estuprar. Agentes que viam as mulheres militantes como desviantes, aquelas que renegavam sua natureza ousando ocupar o espaço da luta política.

O fim da ditadura intensificou a atuação da chamada segunda onda do feminismo que irrompeu no final dos anos 1960 e na década de 1970. Feminismo que, já durante a ditadura, propiciou às mulheres ocuparem o mundo público, questionando o regime patriarcal, a divisão sexual do trabalho. Feminismo que rompeu com os padrões, valores e códigos tradicionais impostos às mulheres, sinalizando com a possibilidade de outros modos de existência para além da divisão da humanidade em formatos binários. As mulheres que participaram da luta contra a ditadura militar de diversas formas, continuaram lutando nas décadas pós-ditadura. Muitas dessas mulheres, ainda durante a ditadura, mesmo sendo de esquerda, ousaram romper com as posturas tradicionais e misóginas reproduzidas por boa parte da própria esquerda a que pertenciam.

As entrevistadas aqui presentes são mulheres que lutaram, a sua maneira, contra a ditadura e forjaram um novo espaço político para a mulher brasileira. Mulheres públicas e profissionais renomadas, as mulheres aqui retratadas eram jovens tímidas e inexperientes quando se lançaram de corpo e alma, nos movimentos de resistência que se organizavam contra a Ditadura Militar. Abriram mão de destinos seguros e confortáveis, já que a grande maioria vinha de família de classe média e alta, para perseguirem suas utopias, em defesa da justiça social, da igualdade e da liberdade. Foram perseguidas, penalizadas, enclausuradas e exiladas, sobreviveram e hoje contam suas histórias.